Novo modelo de estágios pedagógicos

É mau para os professores, <br>para os alunos e para o País

Isabel Araújo Branco
Os futuros professores estagiários e os seus orientadores estão contra as alterações ao modelo de estágio pedagógico que o Governo pretende implementar, referindo consequências negativas para o ensino, para os alunos e para o País.
O novo modelo de estágio ainda não saiu em diploma e, a dois meses do início das aulas do ensino básico e secundário, os futuros professores estagiários ainda não sabem o que vai acontecer. A regulamentação dos estágios é feita pelas próprias faculdades e para preparar o ano lectivo é preciso tempo... que as escolas dizem que excede estes dois meses disponíveis.
Mas as principais críticas sobre o novo modelo recaem sobre o seu conteúdo: os professores estagiário deixam praticamente de dar aulas e limitam-se a assistir a aulas dadas por outros professores; deixam de ser pagos pelo seu trabalho; têm de pagar propinas e não se podem candidatar a bolsas de estudo; têm de suportar sozinhos todas as despesas com deslocações para as escolas onde são colocados, alimentação e material; e este ano de trabalho não conta para a sua carreira.
Diversos órgãos e professores do ensino superior têm manifestado a sua discordância em relação ao Governo, entre eles o Senado da Universidade de Coimbra, que aprovou por unanimidade, a 9 de Junho, uma posição em que critica o processo e apresenta fortes argumentos para a manutenção do modelo actual, baseando-se em anos de boas experiências.
Para o Senado, o modelo em vigor apresenta-se como «um sistema de grande valor para a prática pedagógica e científica em Portugal», porque realiza a formação inicial de docentes ao mesmo tempo que promove «sinergias muito significativas» entre o ensino básico, secundário e superior, «que têm permitido a diversificação da investigação científica, a difusão da informação e da inovação, a articulação das relações entre os espaços centrais (normalmente o litoral) e os espaços periféricos (normalmente o interior) e a multiplicação de actividades científicas e culturais no âmbito dos projectos das escolas».
Dizendo ser «inaceitável» a alteração ao estatuto, este órgão da Universidade de Coimbra declara que «as alterações introduzidas vêm pôr um final abrupto no modelo de formação, que nos parece ter um elevado nível qualitativo, sem que seja criada uma alternativa de formação. A coberto de uma medida que visa reduzir os custos, retirando a justa remuneração dos professores estagiários, põe-se não só em causa a prática pedagógica necessária à formação adequada de docentes para o ensino básico e secundário, mas também a sua integração efectiva numa comunidade educativa, componente indispensável para a preparação do docente em todas as vertentes da sua actividade no meio escolar.»
A altura em que as alterações são introduzidas é também criticada. «Mesmo podendo aceitar ajustamentos ao modelo de formação actual, parece-nos absolutamente injustificado e contraproducente que as medidas agora anunciadas produzam efeitos já no próximo ano lectivo. De facto, para além de serem goradas as naturais expectativas de formadores, orientadores de estágio e particularmente dos professores estagiários, inviabiliza-se muito do trabalho já realizado nas faculdades e nas escolas de ensino básico e secundário que com elas têm vindo a colaborar», refere o Senado.

«Um erro nacional»

Carlos Ceia, professor coordenador do Departamento de Línguas, Culturas e Literaturas Modernas na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, defende que «formar professores ad hoc, como agora ficou decretado, é um erro nacional que pagaremos muito caro em futuras gerações».
No seu site pessoal, este professor declara que não faz sentido «aprender a ser professor vendo como é que os outros fazem, como se fosse possível aprender a ser médico apenas vendo os outros a praticar a medicina ou aprender a ser advogado apenas vendo os outros a praticar advocacia. Quem vai desempenhar esta profissão no ensino secundário tem que estar ter experimentado, sob a dupla orientação de um professor profissionalizado no terreno e um professor supervisor na instituição formadora, o que é ensinar na vida real. Esse é o tempo em que muitos erros futuros podem ser antecipados e corrigidos, em que é possível colaborar com as escolas onde decorre o estágio e aproximar o que são os últimos desenvolvimentos das diferentes disciplinas científicas da prática pedagógica, em que é possível moldar verdadeiramente a vocação recém-nascida e testada de quem sente, com uma sinceridade que escapa normalmente aos decretos políticos.»
Carlos Ceia sublinha que «o Governo acaba de decretar a nulidade de um processo de formação que tem a seu favor todo um conjunto de experiências de boa prática pedagógica» e garante que «não é possível aceitar uma política de formação de professores ditada por questões economicistas, com sacrifício evidente da qualidade da formação profissional». Igualmente, «não é possível aceitar que se reduza a prática pedagógica a um conjunto de observações indirectas combinadas com puras simulações de aula, quando o modelo adoptado nas universidades é desenvolvido com base na observação e responsabilização directas e na leccionação de aulas diárias durante todo um ano lectivo e tem conquistado elevados índices de desenvolvimento profissional. A modalidade de estágio imposta para este tipo de formação de professores abdica da qualidade da formação», garante o professor.

Sara Braz
«Poupar sem pensar nas consequências»

Sara Braz, da Comissão de Luta da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, defende que o novo modelo de estágios pedagógicos é pior para os professores estagiários e para os alunos do ensino básico e secundário. «Ao não permitir que os professores estagiários se responsabilizam por turmas e a sua contratação, impede o acompanhamento dos alunos durante um ano lectivo inteiro. Isto é mau para o professor estagiário, porque não adquire a formação e o conhecimento de como é trabalhar com as turmas; mas também é mau para os alunos, porque passam a ter vários professores na mesma disciplina e a dar a mesma matéria. Acaba por haver uma menor ligação do aluno ao professor, o que é negativo até na transmissão do conhecimento», garante.
Mas as consequências vão mais longe. «Esta medida é também prejudicial para o País, porque, ao piorar a formação pedagógica dos futuros professores, está-se a prejudicar o futuro do ensino em Portugal», considera Sara Braz.
A forma repentina como o Governo pretende impor estas alterações é também criticado pela representante da Comissão de Luta: «De repente, a dois meses do início do estágio previsto, o Governo retira essa contratação, o que prejudica inclusive o modo de trabalhar e de olhar para o estágio. Colocar a hipótese de se fazer qualquer tipo de alteração agora é uma grande irresponsabilidade e revela falta de tacto.»

Governo criticado

O impacto que as alterações – a serem implementadas – terão na vida pessoal dos futuros professores é destacado por Sara Braz. «Muitos planeavam começar a receber um ordenado, que este trabalho contasse como tempo de serviço e ter um contrato de trabalho. Não só não vão ter nada disto, como ainda têm de pagar propinas, as suas deslocações para o local de trabalho, o material que têm de usar para dar as aulas. Isto já acontecia até agora, mas era atenuado pelo contrato de trabalho, por receber um ordenado e depois ter direito ao subsídio de desemprego. Este era um primeiro emprego. A visão de futuro que tinham era completamente diferente», diz.
No centro das crítica de Sara está o Governo, que considera que estas alterações se integram «na linha de cortes e poupanças bastante descabidas e pouco racionais, porque cortam naquilo que é mais importante, nomeadamente na educação.» E lembra: «Os países mais desenvolvidos são desenvolvidos, porque investiram na educação, na ciência e no ensino superior. O que vemos com este Governo é o retirar o direito à educação e o desinvestimento no ensino para poupar sem pensar nas consequências.»

Tiago Silva
«Que profissionais teremos amanhã?»

Tiago Silva faz parte do grupo de estudantes da Faculdade de Motricidade Humana, da Universidade Técnica de Lisboa, que está contra o novo modelo de estágio pedagógico e que procura mobilizar os colegas para o contestar e o revogar.
Tiago considera a medida governamental «precipitada e irreflectida», demontrando «preocupação com o défice e não com a profissionalização dos estudantes». Para ele, devia continuar a existir estágios pedagógicos, «em que nos seriam dadas responsabilidades de turmas, lecionação, avaliações e diversas propostas de trabalho de carácter cientifico-pedagogico entre a faculdade e a escola, além do desporto escolar». Por isso, recusa um estágio «que nem sequer ainda esta definido, embora tenhamos a certeza que é de supervisão».
«A pergunta é inevitável - aprende-se a leccionar observando? É como que tirar a carta sem aulas de condução, só assistindo e observando o nosso instrutor a conduzir», salienta.
É o próprio Tiago que levanta a questão: o que está por trás desta decisão? «Acreditamos que o unico argumento do Governo são os tais 50 milhoes de euros poupados. Mas será que é justo atacar a educação, um dos pilares ou alicerces essenciais de um país, das sociedades contemporâneas? Não dá mesmo para acreditar.»
«E porque é que esta medida é tomada a uma semanas de as faculdades se organizarem com as escolas e com os professores orientadores para a colocação e organização do estágio? Não terão aproveitado também uma época em que os alunos estão muito pouco mobilizados por causa dos exames?», questiona.
Tiago Silva coloca uma última questão: «Com que profissionais poderemos contar amanhã se houver um desenvestimento tão grande na educação?»

Rita Marques
«Temos de pagar para trabalhar»

Rita Marques terminou no ano passado a licenciatura em Estudos Portugueses, na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Este ano lectivo fez as disciplinas teóricas do Ramo de Formação Educacional (RFE), metade desta formação específica para quem pretende ser professor, a que se seguiria um ano de estágio a dar aulas a duas turmas do ensino básico ou secundário. Com a alteração do modelo de estágio imposto recentemente pelo Governo, Rita não poderá completar a formação que iniciou e para a qual pagou propinas.
O futuro agora é uma incógnita para Rita. A sua vocação pessoal para o ensino, bem como a formação que recebeu serão desperdiçadas, caso o novo modelo de estágio seja implementado. Rita sente-se enganada e desiludida e desconhece o que poderá acontecer na sua vida daqui para a frente. «Fizemos escolhas e inscrevemo-nos esperando que as normas fossem cumpridas e agora as nossas expectativas saem frustradas. Isto altera a minha vida e a de todos os outros que estão nesta situação. Tínhamos planos para o futuro, queríamos entrar no mercado de trabalho e os nossos projectos pessoais e profissionais são adiados. Temos de pagar para trabalhar», resume.
O que mais a incomoda é passar para um modelo de estágio pior: «O modelo de estágio vigente permite ao professor estagiário planificar as aulas, leccionar e avaliar duas turmas. Essa prática lectiva seria supervisionada por professores orientadores das escolas onde estagiariamos e proporcionaria uma experiência prática e inseria o novo professor na comunidade escolar, podendo corrigir os seus erros. Este período de trabalho contararia para a carreira docente. Com estas medidas abruptas, o estagiário deixa de ter as perspectivas que tinha quando se inscreveu no RFE ou na Licenciatura Via Ensino, conforme os casos.»

Futuros professores com pior preparação

Segundo o novo modelo, os professores estagiários limitam-se a assistir a aulas e poderão eventualmente leccionar algumas. Rita Marques considera que a sua preparação profissional será pior e argumenta que qualquer formação tem de passar por uma componente prática. «A formação que tivemos já é bastante teórica. Quando entrarmos no mercado de trabalho, não saberemos muito mais do que sabemos agora. Durante mais de 17 anos estamos a assistir a aulas e este ano tivemos uma disciplina onde fomos assistir a variadas aulas, Observação e Análise de Práticas Pedagógicas», salienta.
Na sua opinião, esta mudança a meio do RFE não faz sentido, pois «o ano de formação teórico que agora acabámos, os conteúdos das disciplinas que tivemos estão vocacionados para uma formação prática a seguir. A prática pedagógica deve mesmo ser prática e temos de concretizar os três pilares do processo de ensino: planificação, leccionação e avalização.»
Rita considera que, com esta medida, o Governo pretende afastar professores do sistema de ensino e cortar despesas «atingindo os mais fracos». «O novo modelo constitui uma barreira para os novos professores. Se há professores a mais não é a dar aulas, mas sim nas funções administrativas», defende.
Rita resusa o novo modelo e promete não baixar os braços até o ver revogado, até por razões práticas. A tão pouco tempo do início do próximo ano lectivo, não se conhece os parâmetros que o Governo pretende e há tempo para os adaptar. «Várias escolas secundárias com que havia acordos dizem-nos que agora, com este modelo de estágio, já não nos querem receber porque não há tempo útil para preparar tudo e porque consideram que esta não é a forma correcta de nos formarem», conta.
«Na nossa faculdade, os órgãos de gestão estão divididos, mas penso que a maioria dos professores estão do nosso lado, até pelas posições que apresentaram. Mas, por aquilo que ouço, a faculdade quer ceder bastante, porque os professores já pensam em negociar com o Ministério da Educação podermos leccionar apenas numa turma», diz.


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